Já pensou que a pessoa que você é no Instagram talvez tenha mais a ver com um código de programação do que com quem você realmente é? Parece absurdo, mas pense comigo: enquanto você ajusta o ângulo perfeito da selfie ou edita uma legenda espirituosa, um algoritmo está ali, sussurrando o que pode viralizar e o que vai morrer no esquecimento. No final, quem está no controle: você ou a fórmula matemática?
No ambiente digital, ninguém é apenas si mesmo. Cada post, cada reação e cada comentário fazem parte de uma vitrine cuidadosamente montada para agradar uma plateia invisível. E essa vitrine não é só um reflexo das nossas escolhas; ela é moldada por filtros, “copys perfeitas” e padrões de engajamento que transbordam para os ambientes físicos, redefinindo como nos conectamos fora das telas.
As plataformas digitais transformam a maneira como interagimos socialmente e construímos nossas identidades, criando novas normas culturais que, muitas vezes, carregamos para o mundo offline. Será que ainda entendemos quem realmente somos, ou estamos deixando o digital reduzir nossas múltiplas identidades a um único e conveniente rótulo? Quando o mundo virtual invade o físico, será que resta alguma versão de nós que não tenha sido moldada por curtidas, métricas e a necessidade de engajar?
A Vitrine Digital – Cultura, Memes e Algoritmos Moldando Quem Somos
Para falar de identidades, precisamos falar de cultura. Cultura é o conjunto de normas, saberes, hábitos e crenças que definem um grupo, tribo ou agrupamento de pessoas. No ambiente digital, essa dinâmica persiste, mas com um novo elemento em jogo: os algoritmos.
Richard Dawkins*, em O Gene Egoísta, introduziu o conceito de meme como uma unidade de transmissão cultural, que compete pela sobrevivência em um ecossistema cultural, assim como os genes competem em um ambiente biológico. No universo das redes sociais, os algoritmos operam como um acelerador dessa dinâmica, impulsionando certos memes – ideias, comportamentos ou tendências – que melhor se adaptam às regras do ambiente digital.
Como os Memes Digitais Influenciam Nossa Identidade
E o que isso tem a ver com a nossa identidade? Simples: os memes digitais moldam o que consideramos importante ou digno de ser mostrado. A internet não é apenas uma ferramenta de comunicação, mas um espaço que transforma as normas culturais e cria novos padrões de comportamento. Assim, cada escolha – desde o filtro de uma foto até a legenda de um post – passa por essa lógica de sobrevivência cultural: o que vai engajar mais?
Um exemplo claro é a pressão pela curadoria da nossa “vitrine digital”. Quando decidimos o que postar – e principalmente o que não postar – estamos adaptando nossa identidade para caber nas expectativas de um ecossistema digital saturado de memes em busca de atenção. Não é apenas sobre expressão pessoal; é sobre competição cultural.
E aqui vem a questão: até que ponto nossas escolhas digitais refletem quem somos ou apenas reproduzem os memes que o algoritmo decidiu que valem a pena ser vistos?
Lívia de Pádua Nóbrega , em seu artigo A Construção de Identidades nas Redes Sociais publicado na Revista Fragmentos de Cultura (2010), afirma: “Toda concepção identitária se esboça em forma de representação e no caso das redes virtuais de relacionamento, a representação do indivíduo se dá por meio da publicização do eu. O ego se torna uma centralidade na rede.”
Baixe agora o artigo: https://seer.pucgoias.edu.br/index.php/fragmentos/article/download/1315/899?
Quando o Virtual Colide com o Eu Real
O problema de criar um “eu digital” todo polido e estrategicamente curado é que, mais cedo ou mais tarde, ele bate de frente com o eu real. E quando isso acontece, o resultado nem sempre é bonito.
Pensa comigo: quantas vezes você postou uma foto sorrindo no Instagram enquanto, por dentro, tudo o que queria era sumir por uns dias? Parece simples ou uma situação pontual que não tem muita relevância, mas os mundos digitais nos dão a chance de experimentar novas versões de nós mesmos, mas isso tem um preço. Essas versões editadas acabam convivendo – ou seria competindo? – com quem somos de verdade fora das telas.
A verdade é que o ambiente digital tem suas próprias regras. E essas regras cobram caro: curtidas, seguidores, engajamento… parece que estamos constantemente jogando um jogo onde a gente só vale o que pode mostrar. Vou chamar isso de “edição contínua”. É tipo aquela mania de arrumar o cabelo para cada story ou ficar horas pensando na legenda perfeita – a gente vai se afastando, aos poucos, de quem realmente é. Resultado? Ansiedade, insegurança e aquela sensação de que nunca estamos à altura.
E, como Pierre Bourdieu* aponta, tudo isso é sobre capital simbólico. No mundo das redes, curtidas e seguidores viraram moeda de valor. Isso muda tudo: a forma como nos mostramos, como os outros nos percebem e até como a gente se enxerga no espelho. A pressão de ser interessante no digital começa a moldar nossas escolhas no mundo real, até que o “eu digital” parece mais importante do que o “eu de verdade”.
Esse impacto não é invisível. Um estudo publicado na Nature Human Behaviour em 2024 revelou que o conteúdo consumido online tem um impacto significativo na saúde mental dos indivíduos. A pesquisa indica que pessoas com pior saúde mental tendem a buscar conteúdos negativos na internet, o que agrava seus sintomas. Além disso, a falta de controle sobre os conteúdos devido a algoritmos que promovem informações negativas piora a situação. Diario EL PAÍS
E aí? O que acontece quando essa performance digital pesa mais do que o eu real consegue carregar?
Como Recuperar o Controle da Sua Identidade Digital
Se o “eu digital” tá no volante, é hora de puxar o freio. Não precisa largar o celular e virar eremita no meio do mato, mas também não dá para deixar o algoritmo decidir quem você é. O lance aqui é assumir as rédeas e lembrar que, no final, você tem o controle – ou pelo menos deveria ter.
Então, bora para algumas ideias práticas:
- Questione antes de postar Dá uma pausa e pensa: “Isso é sobre mim ou sobre o que esperam ver?” Essa reflexão simples já ajuda a sair do piloto automático e postar algo que realmente reflete quem você é – e não só o que performa bem.
- Desafie o algoritmo Ele ama previsibilidade. Então, bagunce o esquema: poste o que não é “perfeito”, compartilhe algo sincero, vulnerável ou que nem tem a ver com o esperado. Como Tom Boellstorff* argumenta, os mundos digitais são espaços para experimentação, mas essa experimentação só faz sentido se conecta com o real.
- Aceite que a vida não é um feed bonito Não tem problema se a foto não tá com o filtro certo ou o cabelo tá desarrumado. Autenticidade engaja mais do que a perfeição (ou deveria não é?). Brincadeiras a parte, boa parte das pessoas que ascendem ao status de “celebridade instantânea”, são pessoas comuns, em suas vidas comuns. Apesar do que vimos até aqui, os consumidores confiam mais em marcas e pessoas que são genuínas e humanas, e não inatingíveis.
- Desconecte (de vez em quando) O feed não vai explodir se você sumir por um dia. Aproveite para viver momentos offline sem a pressão de documentar tudo. O melhor da vida acontece quando você tá presente de verdade, e não preocupado com a legenda perfeita.
Recuperar o controle da sua identidade digital não é sobre perfeição. É sobre lembrar que o digital é uma extensão de quem você é – e não sua versão principal. Então, a pergunta que fica é: “quem eu quero ser, com ou sem tela?”
Quem Está no Comando?
No frigir dos ovos, a verdade é que o algoritmo não criou você – mas ele tenta com todas as forças. Ele sugere, molda e até dita comportamentos, transformando a maneira como nos vemos, nos mostramos e nos conectamos. A questão é: quem está no controle?
Richard Dawkins nos lembra, com o conceito de meme, que ideias e comportamentos competem por sobrevivência, e no ambiente digital isso acontece na velocidade de um scroll. A questão é: até que ponto nossa identidade digital não se tornou apenas um reflexo dos memes mais adaptáveis ao algoritmo? Como Pierre Bourdieu apontaria, estamos acumulando “capitais simbólicos” digitais – curtidas, seguidores e engajamento – mas a que custo?
Resgatar o controle é sobre mais do que o que você posta; é sobre quem você é. É sobre usar o digital para ampliar sua voz, não para abafar sua autenticidade. Tom Boellstorff nos lembra que os mundos digitais podem ser espaços para experimentação e conexão – mas só se fizermos isso com consciência.
Então, a pergunta final não é apenas “quem sou no feed?”, mas “quem quero ser no feed, na vida real e em todos os espaços que habito?” No fim, o digital é só um palco – o ator principal é você. A escolha, como sempre, é sua e, como eu sempre digo (na verdade, roubo do gigante Antônio Abujamra), a vida é sua. Estrague como quiser.
Aqui a prosa não termina. É preciso ampliar o repertório e se aprofundar. Nesse artigo, utilizei alguns conceitos que você precisa conhecer. Agora, um ponto extra: tenha brio para se expor ao desconforto e leia, releia e cocrie a partir de conhecimentos mais robustos.
- Pierre Bourdieu, em A Distinção (2007), livro denso, complexo, mas fundamental. Apresenta o conceito de capital simbólico, explicando como status e poder são construídos em interações sociais – algo que, nas redes sociais, se reflete em métricas como curtidas e seguidores.
- Richard Dawkins, em O Gene Egoísta (1976). O livro mais indicado para quem ama ir “um dedinho além” dos conceitos que já conhece e entender como a Biologia pode explicar vários aspectos. Ele introduz o conceito de meme como uma unidade de transmissão cultural, destacando como ideias e comportamentos competem por sobrevivência em um ecossistema cultural – conceito adaptado para a cultura digital.
- Lívia de Pádua Nóbrega, em A Construção de Identidades nas Redes Sociais (2010). Um belíssimo artigo que analisa como as redes virtuais de relacionamento se configuram como ferramentas de construção de identidade pessoal, oferecendo modelos que norteiam a auto-representação dos indivíduos na sociedade.