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Vamos direto ao ponto: quantas vezes você se pegou pedindo para a IA resolver algo que você já sabia fazer (ou deveria saber)?

Corrigir um texto? Criar um cronograma? Escrever uma descrição no LinkedIn que fizesse você parecer mais interessante do que realmente é? Pois é. Corrigir um texto? Criar um cronograma? Escrever uma descrição no LinkedIn que fizesse você parecer mais interessante do que realmente é? Pois é. Agora vem a pergunta incômoda: sem essas ferramentas, você ainda daria conta do recado? Ou sua habilidade foi sugada pelo buraco negro da “eficiência” artificial?

Não se engane: chamar isso de “evolução” é autoengano. Estamos terceirizando não só tarefas, mas também a essência do que nos faz humanos: pensar, criar, errar e aprender. No afã de nos tornarmos mais rápidos, mais produtivos, mais “competitivos”, estamos nos esquecendo de algo fundamental: não é a IA que nos substitui, é a nossa própria preguiça mental que abre a porta para isso.

A questão aqui é: a IA está realmente ampliando suas habilidades ou apenas fazendo você desaprender? Antes de responder, talvez seja hora de encarar o espelho (ou o algoritmo) e refletir sobre como estamos nos deixando levar por essa “mão na roda” que, na verdade, pode ser uma muleta.

1. Eficiência Artificial: Quando fazer menos parece fazer mais

Você sabe o número do seu celular de cor? E o de alguém próximo? Pois é, com a tecnologia nos empurrando listas de contatos e agendas digitais, até lembrar o básico virou “coisa do passado”. Não é exagero: quando foi a última vez que você tentou escrever à mão e não se sentiu como uma criança reaprendendo o alfabeto? O uso desenfreado de celulares e computadores não só atrofiou nossa memória, como também transformou nossa escrita manual em uma sombra do que já foi.

Veja, o fenômeno da “amnésia digital” não é conversa fiada. Estudos mostram que é real e preocupante. Uma pesquisa da Kaspersky Lab escancarou: enquanto conseguimos lembrar números da infância, somos incapazes de recitar de cor os números de contato de familiares ou colegas de trabalho. Nós delegamos à tecnologia até o que antes era instintivo.

https://www.epochtimes.com.br/saude/amnesia-digital-entenda-o-que-o-uso-exagerado-de-celular-pode-causar-na-memoria-204342.html

Agora, um estudo publicado na revista Psicopedagogia vai além: analisando crianças que dependem de dispositivos versus aquelas que ainda praticam escrita manual, os resultados são claros.

Nas crianças “digitalizadas”, a letra é ilegível, a fluidez quase inexistente, e a expressão gráfica, um desastre. Como se não bastasse, o uso contínuo de telas foi associado a deficits de coordenação motora fina — algo que afeta diretamente até a formação de letras e palavras. Escrever pode se tornar uma habilidade tão rara quanto decifrar hieróglifos.

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Imagem: Freepik. Artigo completo no link abaixo

Disponível em: https://pepsic.bvsalud.org/pdf/psicoped/v40n122/0103-8486-psicoped-40-122-0229.pdf

Vamos ao que chamo de “eficiência artificial”: o novo mantra da produtividade moderna. Com um clique, geramos relatórios, corrigimos textos e até planejamos estratégias inteiras. Mas será que essa rapidez não está custando algo essencial? Estamos confundindo fazer mais rápido com fazer melhor. E, no processo, acabamos deixando a IA decidir por nós até mesmo o que vale a pena ser feito.

Pense nos aplicativos que completam frases para você ou nos planejadores que calculam o tempo “ideal” para suas tarefas. É cômodo, claro, mas também é limitador. Ao delegarmos cada vez mais à máquina, perdemos a oportunidade de exercitar nosso pensamento crítico e a criatividade.

Um estudo publicado por Carr em The Shallows alerta que a automação excessiva não é inofensiva. Por meio de uma série de experimentos e análises, Carr investiga como a constante delegação de tarefas cognitivas à tecnologia está reconfigurando o funcionamento do nosso cérebro. O autor argumenta que:

Ao priorizarmos soluções automáticas para problemas cotidianos, nos tornamos menos capazes de resolver questões complexas de forma independente. Disponível em: https://amzn.to/3PajnFN

É como usar GPS: é muito útil, mas depois de um tempo você para de aprender os caminhos. Do mesmo jeito, usar IA para tudo transforma habilidades humanas em redundâncias.

A pergunta que fica é: será que o tempo “economizado” é realmente investido em algo significativo? Ou estamos apenas empilhando tarefas na ilusão de produtividade? A eficiência artificial, ao que parece, é mais sobre atender demandas imediatas do que construir habilidades que realmente importam. E é aqui que entramos no conceito de exaptação: uma ideia que poderia revolucionar o modo como usamos a tecnologia, mas que está sendo deixada de lado por pura comodidade.

2. O jeito certo de fazer a coisa errada

Vamos partir de um ponto importante: ao observarmos as espécies, percebemos que certas características ou habilidades desenvolvidas para uma função específica muitas vezes são reaproveitadas para outra totalmente diferente. Essas transformações ocorrem com a mudança de contextos, condições climáticas ou relações com outras espécies. Esse fenômeno na biologia é descrito como exaptação.

Assim como as penas, que evoluíram para o voo, podemos transformar ferramentas tecnológicas em soluções que transcendem seu uso original. No entanto, isso exige que paremos de apenas delegar tarefas e comecemos a expandir o potencial criativo da tecnologia. Penas, por exemplo, não evoluíram para o voo — eram inicialmente usadas para regulação de temperatura —, mas se tornaram fundamentais para que pássaros dominassem os céus.

Agora pense nos celulares: criados originalmente para fazer chamadas, eles hoje organizam nossas vidas inteiras, de bancos digitais a agendas. Essa capacidade de reaproveitamento é incrível, mas também nos lembra do risco de limitar a inovação. Sem expandirmos as possibilidades, podemos acabar travados no que é apenas conveniente, presos a soluções superficiais.

E se aplicássemos essa mesma lógica à IA? Por que não adaptá-la para ampliar nossa criatividade ou resolver problemas que nunca imaginamos enfrentar? Parece um sonho, certo? Mas estamos seguindo o caminho oposto: sobrecarregando a IA com funções que reduzem nossa capacidade de pensar fora da caixa.

Os algoritmos de sugestão, por exemplo, já escolhem o que você assiste, lê e até compra. Eles não ampliam suas possibilidades; pelo contrário, limitam suas escolhas ao que é “confortável”. Essa ideia me fez escrever um artigo chamado “O Algoritmo Que Te Criou (Ou Quase Isso)”, onde abordo como nossa identidade em plataformas como Instagram pode estar sendo moldada mais por códigos de programação do que por quem realmente somos. No final, quem está no controle: você ou a fórmula matemática? Assim, em vez de adaptar a tecnologia para que nos tornemos mais inovadores, estamos deixando que ela nos molde, achatando nossa capacidade de improviso e adaptação.

Então, o que estamos realmente perdendo? A habilidade de transformar ferramentas em algo maior do que seu uso original — de enxergar novas funções para o que já temos em mãos. Talvez seja hora de abandonar a expectativa de que a IA nos leve ao “próximo nível”. Em vez disso, precisamos começar a usá-la como um trampolim para soluções mais audaciosas. Porque, do jeito que estamos indo, a única coisa que estamos adaptando é a nossa capacidade de nos acomodar.

3. Estamos fazendo demais e pensando de menos

A IA prometeu nos liberar para tarefas mais significativas. Mas sejamos honestos: quantas vezes você usou o “tempo economizado” para algo que realmente agrega valor? Essa ideia foi o cerne do meu artigo “Você Reclama das IAs, Mas Age Como NPC”. Nele, explorei como, enquanto discutimos os riscos de sermos substituídos por IA, perpetuamos comportamentos que nos tornam facilmente substituíveis. Ao vivermos no automático — repetindo rotinas previsíveis e não gerando valor real —, nós mesmos nos transformamos em NPCs: personagens de jogos programados para seguir scripts pré-determinados, sem reflexão ou autenticidade.

Reclamamos que as máquinas ameaçam nossos espaços, mas é justamente esse comportamento de delegar sem criar, de economizar tempo sem investir em qualidade, que nos coloca nessa posição vulnerável. A verdadeira ironia é que, ao reforçar esse ciclo, já entregamos a relevância das nossas próprias contribuições.

A automação deveria ser um meio, não um fim. Quando delegamos tudo à tecnologia, corremos o risco de perder o contato com aquilo que realmente nos diferencia das máquinas. Pense nisso: um algoritmo pode resolver um problema, mas apenas você pode questionar se aquele problema merece ser resolvido. Essa é a diferença entre ser eficiente e ser essencial.

Então, talvez seja hora de revisitar nossas prioridades. Em vez de perguntar “como a IA pode me ajudar a fazer mais?”, que tal perguntar “o que realmente importa que só eu posso fazer?”? Porque, no fim das contas, a verdadeira evolução é aquela que nos torna mais humanos, não mais automáticos.

No frigir dos ovos, quem está no controle?

A questão não é apenas sobre como usamos a inteligência artificial, mas sobre quem estamos nos tornando nesse processo. Estamos terceirizando nossa criatividade, nosso tempo e até mesmo nossa capacidade de reflexão para uma eficiência que nos faz sentir ocupados, mas raramente realizados.

A evolução tecnológica deveria ser uma aliada, mas para isso precisamos parar de agir como NPCs e começar a nos comportar como os protagonistas das nossas próprias narrativas. Isso exige escolhas conscientes: focar no que é essencial, reaprender a usar o tempo com propósito e usar a tecnologia como trampolim, não como substituto.

Então, a próxima vez que você abrir uma ferramenta de IA, pergunte-se: “Estou usando isso para crescer ou apenas para delegar?” Porque, no frigir dos ovos, A verdadeira inteligência não é artificial, é humana.