Se você não acorda às 5 da manhã, faz yoga, responde uns 15 e-mails antes de tomar café e ainda acha que está indo bem… parabéns: o discurso coach te condenaria ao fracasso absoluto. Mas a culpa não é sua – ou talvez seja. Afinal, se sua vida não está dando certo, é porque você não se esforçou o suficiente, né? Pelo menos é o que dizem os gurus da produtividade, enquanto te vendem a próxima fórmula mágica para transformar cansaço em sucesso.
E não para por aí. Agora até na cama você precisa ser produtivo. Dormir bem? É pra “turbinar o cérebro”. Sexo? Uma chance de “melhorar a conexão” e liberar hormônios estratégicos para a criatividade. Descansar? Só se for o power napcom cronômetro na mão. Ócio? Tá doido? Aqui, quem para perde.
Sabe qual o problema dessa obsessão toda? É que ela não só faz a gente surtar, mas também exclui quem não consegue seguir essa cartilha do “produtivo perfeito”. Especialmente quem tem TDAH, autismo ou qualquer outra configuração cerebral que não se encaixa nessa corrida insana. E é sobre isso que eu quero falar: como chegamos a esse ponto? E mais importante: como a gente sai dessa loucura?
O dia que a produtividade virou religião
Produtividade, essa entidade divina que governa nossas vidas, não nasceu ontem. Tudo começou lá na Revolução Industrial, quando perceberam que enfileirar pessoas em fábricas era um jeito brilhante de transformar tempo em dinheiro. Mas foi só quando os escritórios tomaram conta do mundo que produtividade virou um dogma: “tempo é dinheiro”, dizia o evangelho do Sr. Benjamin Franklin, e quem ousasse desperdiçá-lo já estava queimando no inferno capitalista.
Aí surgiram os coaches, esses pregadores modernos. Eles chegaram antes da internet, prometendo transformar qualquer mortal num super-humano que levanta cedo, medita, lê cinco livros por semana e ainda arranja tempo pra maratonar séries. Com bordões como “o impossível é só uma questão de perspectiva” e “se você quer, você consegue”, eles venderam a ideia de que não existe problema que esforço e motivação não resolvam. Soa bonito, né? Até você perceber que eles nunca mencionam cansaço, burnout ou desigualdade estrutural nos discursos.
Mas aí veio a internet – e com ela, as redes sociais, que deveriam se chamar “Hunger Games”. Colocamos todo mundo nelas e dissemos: sobrevivam, se puder! Não basta ser produtivo; você precisa parecer produtivo. E isso significa postar fotos do seu bullet journal, do seu suco verde e daquela reunião às 6 da manhã com a legenda “time is money”. De repente, produtividade virou mais uma competição insana, um grande espetáculo onde quem não performa desaparece do feed.
O mais curioso disso tudo é que a produtividade nem sempre teve esse peso moral. Antes, ela era só uma ferramenta pra organizar o trabalho. Hoje, virou a régua que mede o valor de uma pessoa. Trabalhou pouco? Preguiçoso. Trabalhou demais e queimou os fusíveis? Bem-vindo ao clube dos campeões do burnout, onde se sofre, mas com orgulho.
O problema? Essa corrida pela produtividade perfeita é um jogo que ninguém pode ganhar. E mesmo assim, a gente insiste. Afinal, “trabalhe enquanto eles dormem” soa tão bem, né? Só não disseram que, nesse ritmo, você nem vai ter tempo pra dormir também.
A cama como nova frente de trabalho (e o prazer como KPI)
Lembra quando a cama era um lugar sagrado? Um espaço para dormir, descansar e, ocasionalmente, desfrutar de momentos de prazer? Pois é, parece que essa era acabou. Agora, até o que deveria ser prazer virou mais uma métrica de desempenho.
Primeiro, sequestraram o sono. Dormir bem deixou de ser uma necessidade básica e virou uma “ferramenta estratégica” para otimizar o cérebro. Hoje, você não descansa, você faz “higiene do sono”. Tem que dormir no horário certo, na posição certa, no colchão certo, com a temperatura do quarto calibrada para o flow. E claro, é melhor você usar um relógio que monitore seu ciclo REM, porque se você não medir, será que você realmente dormiu?
Depois, foi a vez do prazer. Sexo? Agora é sobre “melhorar a conexão” e liberar uma cascata hormonal que vai turbinar sua criatividade. Hobbies? Só valem se virarem negócios paralelos ou adicionarem algo no seu portfólio. Fazer algo só porque é divertido? Isso aí já virou pecado capital no mundo hiperprodutivo.
O impacto disso na vida sexual não é nada trivial. Uma pesquisa realizada no repositório da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou a relação entre ansiedade de desempenho, crenças sexuais e disfunções sexuais masculinas. O estudo concluiu que quanto maior a ansiedade de desempenho, maior a probabilidade de crenças disfuncionais e disfunções sexuais estarem presentes, como disfunção erétil e ejaculação precoce. Esse ciclo de ansiedade acaba prejudicando não só a qualidade das relações íntimas, mas também a saúde mental e a autoconfiança dos indivíduos envolvidos.
Por fim, o descanso. Coisa mais banal, né? Só que a gente não tem tempo pra ele. Tudo precisa ser otimizado, cronometrado, monetizado. Não é à toa que o tal power nap ficou famoso: descansar só vale se for o suficiente pra você voltar pro jogo com 110% de energia. Tirar uma tarde inteira pra não fazer nada? Tá louco, aqui quem para perde.
O que me deixa intrigado é como a gente chegou nesse ponto. Como conseguimos transformar a cama – o último bastião do descanso e do prazer – em mais uma frente de batalha? Sabe o que é pior? Nem percebemos que, nessa lógica de desempenho infinito, a gente está se esgotando sem motivo. Porque no final do dia, o relógio de sono e o bullet journalnão vão te dar mais horas de vida. Eles só vão te lembrar que você não fez o suficiente.
Coach de produtividade e neurodivergência: um casamento improvável
Olha, toda vez que eu ouço alguém falar “É só se organizar que dá tempo pra tudo”, eu fico me perguntando: em que planeta essa pessoa vive? Porque, no meu mundo, alinhar os planetas parece mais fácil do que encaixar uma rotina “perfeita” em 24 horas. Agora, imagina o peso disso pra quem tem um cérebro que não opera nesse padrão de fábrica que todo mundo idolatra.
Eu sei do que estou falando. Tenho TDAH, autismo e epilepsia. Minha vida é uma aula prática de como o mundo insiste em medir todo mundo com a mesma régua. Produtividade, pra mim, não é só sobre planejar. É acordar todo dia e lidar com um cérebro que funciona em picos e vales, nunca numa linha reta. É uma batalha contra relógios que ignoram meus ritmos e contra listas de tarefas que, honestamente, às vezes só servem pra aumentar minha ansiedade.
E o coach lá, no megafone, gritando: “Seja sua melhor versão!”. Pois eu vou te contar: tem dias que só sair da cama já é a melhor versão que eu consigo. E isso deveria ser suficiente.
Não é preguiça. Não é falta de esforço. É neurociência. Quem tem TDAH, por exemplo, tem um sistema de recompensa que simplesmente não reage como deveria. Aquela tarefa que pra você parece fácil, pra mim é como escalar o Everest. E aí, me empurrar planner, app de produtividade ou uma palestra motivacional não vai mudar muita coisa.
O pior é como a sociedade lida com isso. De um lado, tem a romantização da neurodivergência. Já ouviu aquele papo de que “autistas têm superpoderes” ou que “o TDAH me dá hiperfoco”? Até pode ser verdade em alguns momentos, mas sabe o que isso faz? Apaga o sofrimento. A psicóloga Patrícia Neumann disse algo que me marcou: “As pessoas em geral não querem conhecer quem tem altas habilidades, elas querem a fantasia que criaram sobre isso”
Do outro lado, tem a patologização. Tudo agora é transtorno. “Ah, mas todo mundo tem um pouco de TDAH…” – sério? Não. Isso não ajuda ninguém. Esse discurso relativiza o sofrimento de quem realmente vive com essas condições e precisa de suporte.
A real é que o mundo da produtividade não foi feito pra gente. Ele ignora nossos ritmos, nossas pausas e até nossos limites. E quer saber? Tá tudo bem. Não precisamos caber nesse molde impossível. Pra mim, produtividade real é sobre achar o que funciona pra você e aceitar que, sim, descansar faz parte do jogo.
Porque, no fim, se nem a natureza é linear, por que raios a gente insiste em ser?
No frigir dos ovos…
No frigir dos ovos, produtividade virou mais um palco de espetáculo. Não basta fazer, você tem que parecer que está fazendo. Não basta descansar, tem que provar que seu descanso está “otimizando” alguma coisa. E não basta ser você, tem que ser a “melhor versão” de você – aquela que só existe no Instagram de algum guru que acha que suco verde cura tudo.
Agora, deixa eu te perguntar: você é neurodivergente ou “normal”, como muitos gostam de se autoproclamar? Porque, se for neurodivergente, talvez já tenha ouvido que seu transtorno é um “superpoder”. Ou, quem sabe, já pensaram em você como o coitado que “precisa se esforçar mais para se superar”. É, meu amigo, ou você é visto como um herói ou como um preguiçoso. Meio termo? Isso parece não existir no script da produtividade moderna.
E se você é “normal”? Talvez já tenha se pego querendo um transtorno pra chamar de seu. Uma desculpa perfeita pra justificar o fato de que, sim, a vida é dura e às vezes você também não dá conta. Ou quem sabe já soltou aquele clássico: “Ah, mas todo mundo tem um pouco disso…” – sério? Não, todo mundo não tem. Esse tipo de frase relativiza o sofrimento de quem realmente vive com essas condições e transforma o diagnóstico em moda ou muleta.
A real é que produtividade não deveria ser essa régua que nos transforma em atletas de uma corrida infinita. Não é sobre ser perfeito, nem sobre acumular troféus de tarefas completadas. Produtividade, pra mim, é sobre respeitar o que funciona no seu ritmo – seja ele o padrão ou totalmente fora dele.
Então, agora é com você: onde você se encaixa nesse circo? É mais um dos que estão correndo até desabar ou já percebeu que dá pra pular fora da roda e fazer as coisas no seu tempo? Me conta: quando foi que você percebeu que precisava pausar? Ou ainda tá tentando provar pra todo mundo (e pra si mesmo) que consegue dar conta de tudo?
Porque no fim do dia, sejamos honestos: se até a natureza descansa, quem somos nós pra achar que podemos funcionar 24/7 sem colapsar?
Referências utilizadas nessa conversa
- Neumann, Patrícia (UFPR) – Discussão sobre a romantização de altas habilidades e neurodivergência:
- “Altas habilidades além da romantização”. Jornal Comunicação UFPR. Disponível em: https://jornalcomunicacao.ufpr.br/altas-habilidades-alem-da-romantizacao/.
- Estudo da UFSC sobre ansiedade de desempenho e disfunções sexuais masculinas:
- “Relação entre ansiedade de desempenho e disfunções sexuais masculinas”. Repositório da UFSC. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/259988.