Tempo de leitura: 13 minutos

Eu sempre me pergunto por que, apesar de toda a propaganda sobre diversidade e inclusão, muitos processos de trabalho ainda são programados para falhar com pessoas neurodivergentes. Isso mesmo tá? Programados para falhar! Não se engane: essas falhas não são acidentes. São falhas sistêmicas, incrustadas nas estruturas das organizações, que negligenciam e marginalizam aqueles que não se encaixam no molde neurotípico. Simbora pensar sobre esse “erro”.

Por Júlio Diógenes


Vamos começar desmontando a ilusão da inclusividade. As empresas adoram exibir suas iniciativas de diversidade e seus selos de “Melhor Lugar para Trabalhar”, mas a realidade é que muitas dessas ações são superficiais. Lançam campanhas com grande alarde, mas os processos fundamentais—recrutamento, integração, avaliação de desempenho e colaboração em equipe—continuam inalterados. Esses processos, desenhados para neurotípicos, excluem sistematicamente pessoas neurodivergentes ao ignorar suas necessidades e pontos fortes únicos.

Recrutamento: O Primeiro Obstáculo

Desde o início, neurodivergentes enfrentam uma barreira após a outra. Os processos tradicionais de recrutamento são armadilhas disfarçadas de procedimentos padronizados. Eles enfatizam interações sociais, contato visual e habilidades de comunicação convencionais, que podem ser verdadeiros pesadelos para pessoas com autismo ou TDAH. Cada etapa do recrutamento parece desenhada para testar não a competência, mas a capacidade de se encaixar em moldes sociais estreitos e normativos.

As perguntas de entrevista padrão são uma verdadeira tortura, avaliando conformidade em vez de diversidade de perspectivas e processos. O que as empresas não percebem é que, ao fazer isso, elas perdem a oportunidade de contratar indivíduos que podem trazer soluções inovadoras e abordagens únicas aos problemas. Cada pergunta, cada avaliação, cada interação é um obstáculo, uma barreira erguida para manter a neurodiversidade fora do ambiente de trabalho.

Não bastasse isso, muitos processos de recrutamento se baseiam em dinâmicas de grupo, testes psicométricos e outras práticas que privilegiam habilidades sociais típicas e\ou o momento realizado, ignorando completamente as capacidades técnicas e outras habilidades dos candidatos neurodivergentes. A exigência de contato visual, por exemplo, é uma prática discriminatória que desconsidera as dificuldades sensoriais e de comunicação de muitas pessoas autistas. Ao forçar uma performance social, os recrutadores perdem de vista o que realmente importa: a capacidade de resolver problemas, de pensar criticamente e de inovar.

Além disso, a falta de treinamento adequado dos recrutadores sobre neurodiversidade agrava ainda mais a situação. Eles não sabem como interpretar comportamentos que fogem ao padrão esperado e, muitas vezes, descartam excelentes candidatos simplesmente por não entenderem suas formas de comunicação e interação. Isso não é apenas injusto; é um desperdício colossal de talento.

A ironia é gritante: empresas que se orgulham de serem inovadoras e de estarem na vanguarda da diversidade ainda se agarram a práticas arcaicas de recrutamento que excluem sistematicamente aqueles que poderiam realmente impulsionar a inovação. É um ciclo vicioso, onde o preconceito implícito perpetua a exclusão, que, por sua vez, impede o progresso real. No final, falta fit cultural ou é um problema crônico dessa geração! Nunca o problema é dentro de casa.

Integração: O Desalinhamento Continua

A contratação é apenas o início do pesadelo para os neurodivergentes. “O inimigo agora é outro” A integração, que deveria ser um processo de acolhimento e adaptação, se transforma em uma verdadeira história de terror. Os programas de treinamento são padronizados e inflexíveis, completamente cegos às diversas necessidades de aprendizagem e sensibilidades sensoriais. Parece que as empresas acreditam que um único método de treinamento pode funcionar para todos, ignorando a realidade de que pessoas neurodivergentes muitas vezes precisam de abordagens personalizadas para prosperar.

Sem suporte personalizado, é praticamente garantido que nos sentiremos sobrecarregados e desconectados desde o primeiro dia. Imagine entrar em um ambiente novo, cheio de estímulos desconhecidos, e ser forçado a seguir um treinamento que não faz o menor sentido para você. É um convite ao fracasso a longo prazo, uma receita para a frustração e o desengajamento. Em vez de nos ajudar a integrar e a contribuir de maneira significativa, a abordagem padronizada nos empurra para a margem, aumentando a sensação de não pertencimento.

A integração eficaz exige reconhecimento e respeito pelas diferenças individuais. Necessitamos de mentorias, instruções claras e adaptadas, e a possibilidade de aprender no nosso próprio ritmo. Sem essas adaptações, a empresa não só nos falha, mas falha consigo mesma, ao desperdiçar talentos e potencial que poderiam ser extremamente valiosos.

Avaliação de Desempenho: Uma Métrica Tendente ao Preconceito

Ah, as avaliações de desempenho. Projetadas supostamente para medir produtividade e trabalho em equipe, essas avaliações frequentemente ignoram as contribuições únicas dos neurodivergentes. Elas são construídas em torno de uma visão estreita do que significa ser um bom funcionário, focando em métricas como pontualidade, interações sociais e adesão a processos rígidos. Isso é um tapa na cara para quem traz habilidades de resolução inovadora de problemas e um foco profundo e singular.

Nos pedem para nos encaixar em moldes que não foram feitos para nós ou com nossa participação, e depois nos julgam por não conseguirmos. Esse preconceito não só impede nossa progressão na carreira, como também perpetua uma cultura de exclusão e discriminação. Imagine ser constantemente avaliado por critérios que não têm nada a ver com a sua capacidade de contribuir de forma significativa. É desmoralizante e injusto.

Outro ponto é o dito processo. Hoje no Bom dia UX (recomendadíssimo para maratonar), dos meus amigos Rodrigo Lemes e Rafael Burity, hoje abordando “Muito processo e pouca execução” com o 🤘🏻 Daniel de Paola (recomendadíssimo para maratonar), foi abordado como um aspecto dessa discussão é particularmente bizarro para neurodivergentes: você entrega um resultado e te pedem um processo. Na dificuldade de estruturar ou identificar, você recebe um lindo convite para uma promoção como colaborador remoto não remunerado. Mas, esse é um rolo de tecido para muitas mangas e muitas discussões, (PS: Aceito convite para voltar hein, Rodrigo Lemes #DicaDoTio)

Colaboração em Equipe: Um Terreno Fértil para Mal-entendidos

A colaboração em equipe, muitas vezes celebrada como o coração pulsante das organizações modernas, é, na verdade, outra armadilha perversa para os neurodivergentes. Esse ambiente, que deveria ser um campo fértil para a troca de ideias e a inovação, se transforma em um terreno minado de mal-entendidos e frustrações. A variedade de estilos de comunicação, sensibilidades sensoriais e abordagens para a resolução de problemas deveria ser vista como uma riqueza, mas, sem a conscientização e as acomodações adequadas, resulta em uma cascata de desentendimentos.

Imagine estar em uma reunião onde o burburinho incessante e as luzes fluorescentes tornam impossível se concentrar. Ou tentar participar de uma discussão em grupo onde a comunicação não-verbal, as insinuações e os subtextos são mais valorizados do que as palavras claras e diretas. Para muitos neurodivergentes, esse é o dia a dia. Somos frequentemente mal interpretados, nossos pontos de vista são ignorados ou mal compreendidos, e nossa contribuição é subestimada.

A falta de conscientização sobre neurodiversidade nas equipes só piora a situação. Sem treinamento adequado, colegas e gestores não sabem como interpretar nossas ações e palavras. O resultado? Somos marginalizados, vistos como difíceis de lidar ou pouco colaborativos, quando na verdade estamos apenas tentando nos adaptar a um ambiente que não foi feito para nós.

Esse ciclo de frustração e desempenho insatisfatório não é inevitável. Com as acomodações certas, a colaboração em equipe pode ser uma fonte de inovação e sucesso. Isso inclui criar espaços de trabalho que respeitem as sensibilidades sensoriais, implementar diferentes formas de comunicação e garantir que todos os membros da equipe tenham a oportunidade de contribuir de maneira que faça sentido para eles.

A Necessidade de Mudança Sistêmica

Para ninguém dizer que estou militando como um neurochato e “apontando apenas o dedo” para o sistema, precisamos olhar nosso lugar e responsabilidade nessa equação: entender que os processos de mudança são graduais e possíveis (dentro do possível). Também é fundamental entender que não há solução mágica. A inclusão exige esforço consciente e uma transformação radical nas estruturas organizacionais. Precisamos repensar e redesenhar processos para que sejam flexíveis e acolhedores. Aqui estão alguns passos essenciais para essa mudança:

  1. Práticas de Recrutamento Inclusivas: É imperativo desenvolver entrevistas que foquem nas habilidades e no potencial dos candidatos, e não apenas na performance social. As avaliações práticas e testes de trabalho devem ser utilizados para avaliar os candidatos em um contexto relevante. Isso significa olhar além das primeiras impressões e ver o verdadeiro valor que cada indivíduo pode trazer.
  2. Programas de Integração Personalizados: A integração não pode ser um processo único para todos. Devemos criar planos de integração individualizados que atendam a diferentes estilos de aprendizagem e forneçam suporte contínuo. Isso pode incluir mentoria, instruções escritas claras e cronogramas de treinamento flexíveis. Cada novo funcionário deve sentir que a empresa está investindo em seu sucesso desde o início.
  3. Avaliações de Desempenho Sem Preconceito: As avaliações de desempenho precisam ser projetadas para reconhecer contribuições diversas. Devemos incluir autoavaliações e revisões por pares para fornecer uma visão holística do desempenho. Os critérios devem ser claros, justos e refletir as diferentes maneiras pelas quais os funcionários podem agregar valor à empresa.
  4. Colaboração Eficaz em Equipe: Promover um ambiente de equipe verdadeiramente inclusivo requer treinamento contínuo sobre neurodiversidade e comunicação. Precisamos incentivar práticas que permitam diferentes estilos de trabalho, como reuniões flexíveis e espaços de trabalho silenciosos. Isso não só facilita a inclusão, mas também melhora a produtividade e a satisfação de toda a equipe.
  5. Feedback Contínuo e Adaptação: Implementar loops de feedback regulares é crucial para entender as necessidades em evolução dos funcionários neurodivergentes. Estar aberto a ajustes e melhorias com base no feedback é um sinal claro de que a empresa está comprometida com a verdadeira inclusão. É preciso criar uma cultura onde o feedback é valorizado e visto como uma ferramenta para crescimento e melhoria contínua.

A transformação necessária para incluir verdadeiramente os neurodivergentes não é fácil, mas é possível e, acima de tudo, essencial. Não se trata apenas de fazer o mínimo para parecer inclusivo; trata-se de criar um ambiente onde todos possam prosperar e contribuir com suas habilidades únicas.

O objetivo final não é apenas acomodar (para isso, alguns preferem um puff grandão. Eu, prefiro uma rede), mas celebrar a neurodiversidade como um ativo vital. Somente assim poderemos passar de um cenário de fracasso para uma base de sucesso e de resultados que podem ser medidos e potencializados.